Sigamos no campo do teatro com alguns saltos temporais; comumente, após os gregos, nos deparamos com os romanos e a Idade Média. As características do teatro conhecido pelos gregos foi transformada, e a ideia do fogo como elemento da iluminação também transforma-se. O formato espacial do teatro muda, e o lugar subjetivo também muda, dos ritos pedagógicos para tratar das desmedidas do mundo em uma arena para muitos, culmina no Coliseu e a espetacularização, para acalmar o povo e domá-lo com leis. Avançando para a Idade Média, o teatro vai para as ruas, para as igrejas e os ricos locais que apoiavam alguns artistas. E de novo uma transformação espacial, agora com o jogo da perspectiva, ilusão, ponto de vista. E os artistas que trabalham com cena quase 2 milênios depois dos rituais gregos, continuam a desenvolver equipamentos para causar confusões na visão, sensações no corpo, ora causados por explosões controladas, ora cenografia pintada, reações químicas entre outros elementos que compõem uma idéia mais Moderna de teatro, que para nós, seres do século XXI, é o teatro que virá a ter elementos estruturais como por exemplo palco, platéia fixa, proscênio, fosso, varas de luz, cenário, alçapão, cortina vermelha, telas de projeção, e uma arquitetura projetada para ampliar o som do palco para frente.
Diante dessa estrutura, somadas aos 3 mil anos que passamos, para meu oficio nesse projeto, que é a iluminação teatral, o que importa é aquilo que se apresente em cena, e como o acontecimento revelar-se-á diante dos olhos do público. Mantém-se também o fato de que a técnica que esteja segurando espelhos para refletir no sol ou operando maquinarias do alçapão fica em silêncio escondida e numerosa. A cena exige ação de um coletivo de pessoas para que aconteça, um coro-equipe dançante que se coloca à postos, quase religiosamente para receber ordens e executá-las. Mas o mundo mudou muito desde os mitos gregos, criação da posição do encenador, mudança na estrutura física do teatro, e a introdução de idéias mais amplas sobre o que é arte para dentro do mundo e para dentro do próprio teatro.
A graxa (apelido carinhoso da técnica que normalmente precisa se arrastar no chão para passar cabos, carregar peso, equipamentos, etc ) ao longo desses anos muda muito. Hoje já não precisamos canalizar gás para iluminar a cena, nem fazer tochas para guiar um coro. Muitas vezes a Graxa, antes da formação técnica, temos formação artística, antes de chegar a esse mundo, passamos pela direção, atuação, dança, cenografia, audiovisual, arquitetura; e muitas vezes somos sobrecarregados em projetos realizando funções diferentes. Somos colocados como executores do mundo mágico criado pelas ideias da caixa que nos inserimos na modernidade. Mas diante das transformações sociais do último século muitos técnicos tomaram consciência de que não existe obra sem nós. E que mesmo com as mãos sujas, somos artistas.
Particularmente, acredito que ser de outra área antes de entrar na arte não é um problema, mas para a forma que nos posicionamos diante disso, é e muito. Muitas vezes, a graxa recebe salários menores, levamos calote e somos convocados de última hora nos processos de criação de espetáculo para ‘deixar estético’ e embelezar a imagem da cena, o que quer que seja isso. Muitas vezes ao compor uma equipe lembram de nós em momentos de crise, semanas antes da estréia, e em 2 semanas você tem que integrar-se ao grupo, compreender as questões, inquietações e discursos de um processo de meses, desenvolver idéias para sua função, e debater conceitos que na peça são importantes dentro do seu ofício sem saber que o grupo tem debates ou leituras coletivas. Ou seja, existe uma parcela do coletivo que discute conceitualmente a obra e desenvolve uma linguagem, mas não somos convocados com igualdade para essa criação. E isso não é ruim somente pelo tempo ou pela urgência gerada pelo curto tempo. Isso é ruim pois não assumimos conceitualmente a graxa como parte integral do trabalho artístico.
Lembro-me de chegar aos locais de apresentação mais cedo, trabalhar antes, durante e depois do espetáculo e muitas vezes nem ter meu nome no programa da peça como equipe. Muitas vezes “colegas” atores, diretores que não te olham no olho nem fazem questão de saber seu nome. E isso é uma conduta aceitável pelo coletivo, muitos de nós nos calamos diante disso e cumprimos nossa função sem dizer nada, voltando pontualmente no dia seguinte.
Na linguagem teatral, temos muitas funções possíveis de serem preenchidas a fim de compor uma obra. Ao contrário de algumas organizações, podemos escolher eliminar funções. Ou seja, poderíamos em hipótese, não ter um Oscar Niemeyer, poderíamos simplesmente trabalhar com os Candangos*. O arquiteto é fundamental, mas sem os Candangos, nenhum edifício estaria de pé.
Durante minha vida tive a possibilidade de desenvolver um projeto teatral que se propôs a abrir mão de funções artísticas muitas vezes consideradas como lideranças e fundamentais para a criação. E nesse projeto, vislumbrei que separamos áreas artísticas e áreas técnicas por um motivo estrutural e exploratório. Normalmente as áreas artísticas atuam como protagonistas, mas as artes da cena, incluindo o teatro, são extremamente técnicas e exigem pessoas preparadas para realizá-las. É lindo conversarmos sobre idéias com os diretores, atores, performers, mas interessante mesmo é quando somos, escutamos e criamos juntos.
Acredito que é necessário sermos autônomos e quando realizamos uma obra, somos artistas juntos, independente de nossas funções. As descobertas que realizamos diariamente sobre nossas relações internas e interpessoais transformaram a nós e a forma que vemos o mundo de uma maneira irreparável. De certa forma cabe a nós decidirmos qual atitude teremos diante de nossos colegas de trabalho, e daí então mudar o mundo que vivemos. E acredito que o que vemos nesses últimos 100 anos de mundo nos revela que há mais mistérios entre o céu e a terra do que julga nossa vã filosofia.
Nara Zocher
20/04/2021
* Candango é o termo pelo qual ficaram conhecidos os operários que vieram trabalhar na obra de construção da nova capital brasileira, Brasília, e em toda a infraestrutura que compreende o distrito federal.