“Qual conhecimento tem feito parte das agendas e currículos oficiais?

E qual conhecimento não faz parte de tais currículos?

A quem pertence este conhecimento?

Quem é reconhecido/a como alguém que tem conhecimento?

E quem não é?

Quem pode ensinar conhecimento?

Quem pode produzir conhecimento?

Quem pode performá-lo?

E quem não pode

O conceito de conhecimento não se resume a um simples estudo apolítico da verdade, mas é sim a reprodução de relações de poder raciais e de gênero, que definem não somente o que conta como verdadeiro, bem como em quem acreditar. Algo passível de se tornar conhecimento torna-se então toda epistemologia que reflete os interesses políticos específicos de uma sociedade branca colonial e patriarcal.”

[Grada Kilomba em Descolonizando o Conhecimento

Uma Palestra-Performance]

Ao estudar a ditadura brasileira e o seu projeto ainda em vigor, não podemos deixar de sublinhar esse rombo subjetivo e prático das nossas vidas e, tão pouco, podemos deixar de lado esse GRITO: o apagamento da dramaturgia escrita por mulheres nas décadas de 60 e 70. Também não podemos colocar somente na conta da ditadura e suas atrocidades o apagamento de suas obras, afinal, tinha a mulher escritora que combater o regime ditatorial e o machismo, também em muitas vivências era necessário somar a luta contra o racismo, homofobia, transfobia e o preconceito de classe. Esse preconceito era/é presente, inclusive, entre seus companheiros de profissão e resistência política. O campo minado para a mulher era/é maior. 

Temendo ainda estarmos presas/es/os nessa lógica, acendemos uma vela à luz dessa pesquisa. 

“No final, estouraram aplausos. Os conceituados diretores Antunes Filho e Flávio Rangel, na plateia, no início com desconfiança, nos aplaudiram de pé também.” 

[Leilah Assumpção no seu livro Memórias Sinceras]

*Partimos das dramaturgas contemporâneas a Guarnieri, já que o estudo da época se tornou ponto essencial no desenvolvimento da nossa pesquisa. Percebemos então, que o que a gente chama e estuda sobre ‘dramaturgia brasileira dos anos de chumbo’ é na verdade também um recorte histórico que tem a ver com controle, com uma censura de outra natureza, tem a ver com a fundação de uma ideia de que as obras daqueles dramaturgos como Guarnieri, Vianinha, Plínio Marcos, entre outros, eram as únicas relevantes em termos de qualidade e valor político e, por isso, as únicas que deveriam ser estudadas. Uma escolha que nos faz, nos dias de hoje, olhar para as obras das dramaturgas da época quase como se fossem inéditas, mesmo o Teatro do Osso sendo formado por pessoas que estudaram nas maiores instituições de ensino de artes cênicas da América Latina.

“A dramaturgia de Leilah Assumpção e Consuelo de Castro, constituiu uma resposta tão adequadamente política ao momento histórico quanto do Arena e do Oficina (…) Na verdade, “pulsa aí um ‘movimento, revolução, um momento da mais longa das revoluções, a revolução das mulheres’”. 

[Elza Cunha de Vincenzo no livro Um Teatro da Mulher]

Precisamos refletir sobre a ausência dessa dramaturgia específica por parte de quem conta essa história. Afinal, são ausências inventadas, porque essas pessoas existiram, produziram dramaturgia e precisamos recuperar isso. É nosso dever político fazer esse resgate, mesmo que ele seja de fragmentos.

“É importante pensar sobre a responsabilidade da dramaturgia: Moliére na França, consegue unificar a língua francesa a partir da dramaturgia. O Teatro é um meio muito poderoso para corporificar, para materializar, pra instituir uma narrativa.”  [Dione Carlos durante a Palestra Dramaturgia Pluriversal – Herança Afro-Indígena]

Depois dessa primeira visita ao trabalho de Consuelo de Castro, Leilah Assumpção e Renata Pallottini – essa última que participou dos Seminários de Dramaturgia do nosso atual projeto -, ficou nítido que a leitura de suas obras nos convocavam a ampliar o nosso estudo e, a partir daí, trazer de fato a pluralidade pretendida dentro da expressão “dramaturgia escrita por mulheres brasileiras”, já que o recorte acima representa mulheres brancas de classe média que, justamente por esses fatores, ainda conseguiram ter seus textos registrados e encenados, ainda que escassamente

O apagamento das dramaturgas e escritoras negras, indígenas, LGBTQIA+, e/ou de diferentes classes e regiões do país, no período similar ao “Um Grito parado no Ar”, é ainda mais cruel e intensifica o contraste entre o que foi escolhido aclamar, daquilo que não não foi, daquilo que foi publicado e reconhecido e daquilo que foi literalmente jogado na lata do lixo, incinerado no país patriarcal e racista em que vivemos.

“Existiam mulheres negras dramaturgas nessa época, mas não havia publicação. Quando fui fazer uma curadoria, tive uma conversa com o Salloma Salomão, disse que estava desesperada pra fazer o percurso histórico e não conseguia fazer, então ele me disse: não vai fazer porque elas não foram publicadas, tinha o lance da grana. Mas, pensando em 1950 e 1960, podemos falar da Carolina Maria de Jesus.” 

[Dione Carlos em conversa com o grupo em 26/06/2020]

Esse texto é um breve relato do que pulsou durante a nossa escavação pela dramaturgia plural, pela busca da equidade. É uma pesquisa que não acaba, uma luta que não cessa num horizonte próximo, mas partilhamos aqui a alegria por termos chegado a alguns nomes e obras, graças às Deusas e as parcerias aqui citadas, e que hoje nos impulsionam para a escavação cada vez mais profunda de nossas raízes e da nossas história. Vamos juntas/es/os?

VIVA DIONE CARLOS, DULCE MUNIZ, RENATA PALLOTTINI, GRACE PASSÔ, GRADA KILOMBA, LEILAH ASSUMPÇÃO, LEDA MARIA MARTINS, EDY LIMA, CONSUELO DE CASTRO, CAROLINA MARIA DE JESUS, HILDA HILST, ISABEL CÂMARA, CONCEIÇÃO EVARISTO, ELZA CUNHA DE VINCENZO, CAROL PITZER,  MARIA SHU, VANA MEDEIROS, MARIANA BIZZOTTO, PALOMA FRANCA AMORIM, FERNANDA AZEVEDO E MUITAS OUTRAS. 

“Esse é o ato mais maternal que eu posso dar a este mundo lamacento, vendido, injusto, capitalista, militar, patriarcal. Esse é o ato mais maternal que eu posso dar a este mundo, minhas filhas, ser.

Uma Indomável Mulher.”

[Grace Passô – Mata Teu Pai]

produção / realização